Poesia revela o mundo sempre como avesso, não como espelho – 17/07/2021 – Bernardo Carvalho

Poesia revela o mundo sempre como avesso, não como espelho – 17/07/2021 – Bernardo Carvalho


Não há palavras para riscar em “Risque esta Palavra”, de Ana Martins Marques. A autora é obcecada pelas línguas, pelas palavras e as coisas, como qualquer poeta, mas especialmente pelo que elas têm de incompreensível, de estrangeiro, do avesso que se revela nas dobras e nas reviravoltas do poema.

As consequências dessa obsessão são também políticas.

Está implícita, entre as questões que a poeta não reivindica diretamente mas que se desdobram a partir da leitura, a estranha relação entre identidade e recusa do real (narcisismo, infantilização do mundo, negacionismo) que, como acabamos entendendo, é condição de possibilidade dos fascismos.

Nessa poesia nada é natural. Em vez de corresponder à ilusão de uma natureza domesticada, representação infantil e confortável, pátria que nos acolheria, confirmando-nos, abraçando-nos, servindo-nos de espelho, as coisas são atiradas de volta ao maremoto do real, atravessadas pelas contradições que tornam suas definições mais complexas e difíceis, quando não impossíveis, e assim nos permitem a redescoberta do mundo. O resto é impostura.

Basta a poesia de Ana Martins Marques falar de identidade (na verdade ela nunca fala: “Impresso / como parece estranho / o mesmo nome / com que te chamam”, no “Livro das Semelhanças”, de 2015) para que a identidade já não seja. “A terra prometida a um / será no entanto entregue / a outro […] A passagem comprada por um / será usada por outro […] Quem está de partida / arruma a mala / de um desconhecido.”

Tudo é ao mesmo tempo o que é e o que lhe é estranho, o que se diz, o que se afirma e seu contrário, parte e parte alguma.

É nesse deslocamento, nesse vaivém, que ela opera sua política discreta, não dita, de dizer as coisas pelo avesso. Quem te dá identidade é o outro, o que você não é ou não quer ser, contramolde, bode expiatório, por mais que depois você a afirme como sua, autônoma, independente, inata, original. Sem o outro, ninguém é ninguém.

A identidade é um processo de naturalização, como se os limites, as fronteiras e os pertencimentos fossem naturais, atributos da natureza. A literatura (e a poesia em particular) opera pelo processo inverso, de desnaturalização das palavras e das coisas, para voltar ao confronto com a confusão do real, com o diabo não só na rua como dentro de casa.

A chuva borra as fronteiras e as cores dos países no mapa. Ninguém nasce falando uma língua: “No princípio / toda língua é estrangeira”. A poesia é o estado de pertencer não pertencendo: “Estar na língua como numa / casa louca / que obriga ao abrigar”.

É a língua que se apodera de quem fala. Ela se apossa do seu corpo até “fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes / que ela lhe dá”. O livro não é seu, autor: “você é o livro / dela”.

Em “Sobre um Poema de Issa”, Ana Martins Marques procede a uma dupla (e irônica) denegação sobre a armadilha de se tomar o poema pelas afirmações do autor. O poeta japonês do século 18 escreve em um poema: “Amanhã outra vez não farei nada”. A poeta o desmente (“o poema de Issa / é obviamente uma mentira / já que ele o fez”) para mentir de novo: “Já eu hoje não fiz / de fato nada”.

O que o poeta diz não se escreve. O que se escreve é sempre outro, é sempre contradição. O poema é ação e reflexão simultâneas, uma contradizendo a outra. Isso quer dizer que a literatura (aqui a poesia) não representa apenas, não expressa, ilustra ou conta mais ou menos bem uma história, ela faz história, o que é bem diferente. Ela é a própria história em processo. Ela não confirma o que (se) diz, não corresponde a uma fala, a uma asserção, a um documento. Ela não vem depois de um ato; ela é o ato, inauguração de uma língua ou várias ao mesmo tempo.

O que você faz dessa potência é também um ato político. Não é uma questão retórica ou metafísica. Reduzir a literatura a sociologia ou história, representação do autor, confirmação daquilo em que se acredita, ilustração do que já se sabe, é tentar solapar a força dessa contradição.

A atual impossibilidade da crítica (substituída pelo compartilhamento do gosto) é resultado do horror às contradições. O que não te confirma não te interessa, você cancela, apaga, risca. A morte, a dor. A palavra que não te convém você não entende.

Então, é esta a política da poesia: trazer a contradição (o real) de volta para dentro do compartilhamento. Revelar o mundo não mais como espelho, mas como avesso, outro, sempre. Para que alguma forma de entendimento entre estranhos ainda seja possível, e uma saída, apesar de tudo.


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