Reencontrei um amigo músico e comecei a escrever letras na pandemia – 29/01/2022 – Casos do Acaso

Reencontrei um amigo músico e comecei a escrever letras na pandemia – 29/01/2022 – Casos do Acaso


Fevereiro de 2020. Final da temporada anual na casa da praia, já um quê de nostalgia nas caipirinhas com os amigos. A nostalgia foi substituída por surpresa quando apareceram notícias internacionais sobre uma epidemia, que alguns dias depois perderia esse nome. A surpresa transformou-se em espanto, e fomos acompanhando e compartilhando o temor de amigos italianos que nos faziam companhia e precisavam voltar para o seu país.

Aposentados, eu e meu marido resolvemos permanecer na praia, no aguardo dos acontecimentos. Naquele momento, a gente não imaginava a dimensão do que nos aguardava. Em menos de duas semanas, soubemos que o mundo estava enfrentando uma pandemia e nos demos conta de que aquilo não seria uma temporada prolongada, mas uma possível longa permanência. A questão da nossa casa no interior foi contemporizada com a ajuda de um filho e neto (já somos bisavós), e partimos para a nova rotina.

Aos poucos, as idas à praia foram escasseando, os amigos do condomínio foram ficando mais reclusos, outros dando por terminada a temporada. Compras pela internet foram se intensificando, livros, equipamentos para viabilizar atividades físicas. Delivery para alimentação, farmácia. A faxineira quinzenal foi dispensada, atendendo a necessidade sanitária.

Deixamos de navegar a partir das areias da linda Guaecá e passamos a velejar na web. Amigos e familiares por vídeo, acesso a redes sociais, filmes, livros. Não, livros em papel, mas que vieram pela internet.

Em uma relação de afeto com a música —arranhando no piano digital uma bossa nova ou um clássico dos tempos da adolescência—, foi com surpresa que recebi do Facebook a sugestão de amizade de um amigo músico que havia décadas não tinha notícias. A lógica dos algoritmos pode nos surpreender com a impressão de casualidade. Por certo tínhamos algum amigo em comum.

Claro que solicitei a amizade gargalhando internamente: “Como assim, solicitar a amizade de quem já era amiga há quase 50 anos?!”. Acessando seu perfil, emocionada, cantei junto uma postagem dele ao violão, tocando e cantando Chriz Montez, “The More I See You”. Dando uma pesquisada nas postagens, encontrei muitas músicas dele, tocadas ao violão, com ritmo eletrônico e melodia solfejada.

Fiquei surpresa, pois na época em que convivemos ele não compunha. O inacreditável é que ele oferecia as músicas a quem se interessasse em colocar letra. Eu, que só fazia poemas, conseguiria fazer letra de música?

Para meu amigo cabe um parêntese. Há 50 anos, eu com 20 anos, ele uns 22, compartilhamos uma república em São Paulo, para onde eu, do interior, me mudei para fazer cursinho pré-vestibular. A maioria do pessoal era músico e carioca, só eu paulista. Ficava um sobradinho de frente estreita, em Moema, e esse talvez tenha sido o período mais importante da minha vida.

Quando formamos a república, eu estava grávida e solteira. Era 1973 e meu bebê nasceu em um ambiente alegre, com boa música diuturna e solidariedade. Com relacionamentos significantes, as boas lembranças são profundas e eternas.

Findo o necessário parêntese, no início tive o espanto de estar conseguindo escrever boas letras para as boas músicas! Pop, samba rock, até um forró em que abusei de provérbios. Para uma valsinha linda, composta para uma ex, seu grande amor, incorporei Dora, a personagem de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”. Pedi detalhes pessoais e do relacionamento, e foi como se escrevesse uma carta musicada, que depois, cantando, ele mandou para ela.

Embora morando em cidades próximas, ambas na praia, respeitando o distanciamento protocolar na pandemia, nossa comunicação foi só pelo WhatsApp e videochamadas. Quando a música disparava no andamento, ele solfejava frases musicais mais lentamente, para que som e sílaba fossem parceiros. Como foi difícil o verbo cantado em colcheias, que falasse da brincadeira entre estrelas e borboletas, na música “Sol de van Gogh”, já no YouTube. Consegui com o gerúndio “cirandando”.

Em tardes e madrugadas, quanta cantoria à procura da melhor expressão para o sentimento e a melhor sonoridade para a necessária sílaba, em um encantamento que fazia germinar as sementes de papaia jogadas na encosta, ao pé da mata atlântica. No vaso, o pé de bucha floriu. Jacus e delicadas teias tecidas por exóticas aranhas tiveram sua presença registrada. No tripé do encantamento, uma tristeza pela incógnita a nos impor o vírus e um pensar longínquo, por vezes até divertido, quando escrevia as letras.

Em virtude dos arranjos e da execução de alguns instrumentos para as 12 músicas que estão sendo gravadas, com planos de irem para uma plataforma de streaming, meu amigo e parceiro musical está, temporariamente, distante das composições.

Terá sido o acaso a provocar essa terrível e improvável situação que nos obrigou ao isolamento, período em que meu amigo descobriu-se compositor? Por acaso me deparei com o oferecimento de músicas sem letras? E eu, me atirando a esse acaso, por ele me encantei e agora me vejo enlaçada em uma necessidade.

Meu parceiro musical é benevolente. Estou pensando em postar: “Procura-se um compositor”.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.


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