Covid-19 é apenas ensaio para novas pandemias que estão por vir – 12/05/2021 – Henrique Gomes

Covid-19 é apenas ensaio para novas pandemias que estão por vir – 12/05/2021 – Henrique Gomes


Apesar de o Brasil ainda se encontrar em situação precária frente à pandemia, boas notícias começam a emergir ao redor do mundo.

A eficácia das principais vacinas desenvolvidas até agora é maior do que mesmo os mais otimistas entre nós teriam previsto há um ano. A maioria dessas vacinas diminui muito significativamente a chance de infecção por Sars-Cov-2 —o coronavírus que causa a Covid-19— e mais ainda a chance de a doença resultante se tornar severa.

Isso já seria o suficiente para muita celebração, mas tem mais boa notícia: as vacinas parecem também funcionar bem contra as temidas “variantes de preocupação”: a Pfizer anunciou na segunda-feira (10) que as variantes não requerem nem sequer o desenvolvimento de um reforço específico. Tudo indica que as vacinas logo reduzirão a pandemia ao status de gripe comum, no mínimo.

Nosso esforço coletivo nesse último ano não tem precedentes recentes; me atreveria a dizer que, no último século, só é comparável àquele empregado durante as guerras mundiais. Estarmos finalmente emergindo desse período obscuro é motivo de celebração, sem dúvida.

Mas, além de celebrar, é também hora de honrar os mortos e o nosso próprio sacrifício. Assim como no caso das últimas grandes guerras, não há honraria maior do que nos organizarmos para que essa tragédia não se repita. A pandemia do coronavírus foi um ensaio geral bem leve, e tivemos sorte. Os testes reais ainda estão por vir.

Talvez o leitor me ache demasiado macambúzio sobre o futuro e quiçá leviano frente ao desastre que acabamos de presenciar. Pois me explico. A OMS estima que, entre os infectados pelo Sars-Cov-2, de 0,5% a 1% das pessoas morram, a maioria de idade avançada.

Há muitos vírus conhecidos que têm índice de fatalidade maiores por ordens de magnitude: a Sars, por exemplo, mata cerca de 10% dos infectados; o índice de letalidade da gripe aviária, H5N1, segundo a OMS, é ainda mais terrível: 60%; e por aí vai. Não há nenhuma lei divina obrigando o Sars-Cov-2 a ter fatalidade tão menor do que esses outros vírus.

Tivemos sorte. Imagine uma pandemia causado por um vírus com um período de incubação parecido com o do coronavírus, com a fatalidade do H5N1 e a infecciosidade da varíola. Uma porção significativa de trabalhadores essenciais logo deixaria de comparecer ao trabalho, por doença ou precaução. Logo, as linhas de produção seriam afetadas, incluindo as usinas de energia.

Sem luz (e sem internet) e sem reabastecimento no supermercado, a civilização como a conhecemos estaria em sério risco de ruir por completo em questão de meses. Quem sobrevivesse ao vírus poderia não sobreviver ao cenário apocalíptico que estaria por vir.

Há, porém, vários sinais de que não estamos fazendo a nossa lição de casa frente aos riscos que inúmeros vírus apresentam para a civilização humana. O desmatamento e o contato próximo entre humanos e animais selvagens aumenta a possibilidade de um salto de um vírus zoonótico para a população humana, por exemplo.

A evidência genética ainda aponta para essa origem do Sars-Cov-2, mas a maioria dos epidemiologistas ainda mantém o escape do vírus dos laboratórios do Instituto de Virologia de Wuhan como uma possibilidade aberta.

A probabilidade desse tipo de origem para um vírus perigoso também aumenta a cada ano: o desenvolvimento de tecnologias de edição genética segue a passos largos e é preciso cada vez menos infra-estrutura e investimento para modificar vírus existentes e torná-los mais perigosos.

Por exemplo, o terrível H5N1 é intransmissível de humano para humano em sua forma natural —a infecção só se dá através do contato animal. Mas, em 2012, virologistas holandeses modificaram o vírus, se livrando dessa limitação e transformando-o em uma ameaça para a nossa civilização. Nas palavras do Conselho Consultivo Nacional de Ciência de Biossegurança, nos EUA, “a liberação do vírus modificado pode resultar em uma catástrofe inimaginável, da qual o mundo está inadequadamente preparado”.

As intenções do grupo holandês até que eram louváveis: descobrir se o vírus poderia encontrar esse mecanismo de transmissão através de seleção natural. Mas os riscos são enormes, e, na minha opinião, o ganho em conhecimento não os compensam. Mesmo que a seleção natural eventualmente encontrasse esse caminho genético, não seria melhor que fosse daqui muitos anos, quando teremos —tomara!— melhor tecnologia para lidar com esse tipo de ameaça?

Esse caso do H5N1 ilustra bem problemas de biossegurança atuais. Por incrível que pareça, o laboratório holandês em questão nunca teve que pedir permissão governamental para o experimento. Todos os obstáculos burocráticos eram internos, e a avaliação externa só foi necessária na hora de liberar a publicação dos resultados (que foram redigidos para omitir informações perigosas).

Nenhum juiz, nenhum painel, nenhum orgão de segurança nem sequer teve a oportunidade de dizer não, de negar autorização para que esse laboratório comum fizesse apostas com o futuro da humanidade. E foram apostas: até os mais seguros laboratórios do mundo, de nível 4 de biossegurança —o laboratório holandês era de nível 3— sofreram acidentes em que vírus perigosos escaparam.

Essa foi, por exemplo, a origem do surto de febre aftosa no Reino Unido em 2007, dos ataques de Antrax nos EUA e até mesmo a causa da última morte por varíola, entre outros acidentes e quase acidentes.

A nossa falta de organização e precaução é alarmante, e não por falta de aviso. Uma análise publicada no Clinical Microbiology Reviews, em 2007, após o surto de Sars de 2003, declarou o consumo de animais silvestres, como o morcego, uma “bomba-relógio” para novas epidemias. No front menos acadêmico, Bill Gates exortou governos, em uma TED Talk, a levar as lições dos surtos de ebola a sério e se preparare para novas epidemias.

Nenhum desse avisos, contudo, surtiu efeito. “Mercados molhados” persistiram pelo menos até 2019, possivelmente dando origem ao Sars-Cov-2, e ainda não há esforço global significativo para monitorar laboratórios com acesso a vírus perigosos. Pelo menos até há pouco tempo, governos ao redor do mundo não sentiam que gastos com um melhor preparo eram justificados.

Isso precisa mudar. Em primeiro lugar, precisamos de orgãos internacionais com poder de supervisão e veto de pesquisas perigosas, sem limitação de fronteiras. Não podemos também permitir casos como o de final de 2019, quando autoridades locais em Wuhan tentaram abafar o surto de Covid-19 e quando o governo federal, por sua vez, custou a alertar o resto do mundo sobre o vírus.

Precisamos também de um sistema de monitoramento virológico avançado e onipresente. Tomando nossas lições com os surtos de ebola na África, criou-se o programa Sentinel, na Nigéria, um sistema de prevenção de epidemias multifacetado que usará diagnósticos de ponta e tecnologias de sequenciamento, análise de dados e ferramentas de visualização e aplicativos móveis centrados no consumidor para responder a patógenos emergentes em tempo real.

Esse tipo de programa precisa ser globalizado: o custo, por maior que seja, acredite, será bem menor que o que gastamos com defesa militar mundialmente, e o retorno desse investimento é incalculável.

Se a pandemia de Covid-19 fosse um ensaio geral, todos os atores teriam esquecido suas falas, teria faltado luz e o palco teria colapsado. Agora, nos resta investir mais, coordenar melhor, legislar e torcer para estarmos mais bem-preparados na noite de estreia.

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