
A imperdoável volta da fome – 13/10/2021 – Sérgio Rodrigues

Logo no início do romance “Vidas Secas”, que acompanha uma família de retirantes fugindo da seca e da fome, o genial escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) justifica o adjetivo que acabo de usar.
Me refiro ao momento em que o protagonista, o vaqueiro Fabiano, contente por acreditar ter resolvido seus problemas quando encontra uma fazenda que aceita receber sua família, diz a si mesmo: “Fabiano, você é um homem”.
Mas alguma coisa não soa bem. Considerando a frase “imprudente”, o marido de sinha Vitória e pai de dois filhos logo inverte a formulação, trocando até o lugar do vocativo: “Você é um bicho, Fabiano”.
Essa passagem do reino humano ao animal —uma passagem de mão dupla no livro, como se evidencia na humanização da cachorra Baleia— é mais curta do que pode parecer a uma sensibilidade saciada.
Chama-se fome, substantivo terrível que o português herdou do latim “fames”, sinônimo do inglês “hunger”, do russo “golodnyy”, do indonésio “lapar” e do japonês “onakagasuita” –para citar apenas alguns dos nomes babélicos da besta que o Google nos ensina.
“Viver é estar em dia com a fome, com a fome, com a fome”, cantou Djavan, outro alagoano, este de estilo mais florido — mas dessa vez fazendo o mais sensato sentido. Inclusive na repetição da palavra.
Estar em dia com a fome é tarefa sem fim. Ela nunca dá trégua por mais de algumas horas — e em dezembro de 2020 eram quase 20 milhões os brasileiros que declararam passar 24 horas ou mais sem comer. Comparável apenas à sede e mais urgente que o apetite sexual, a fome é uma âncora inclemente do humano no animal.
Uma pessoa que tem fome é um bicho, como Fabiano, porque incapaz de cuidar de tudo o que temos de mais humano —arte, pensamento, sonho, jogo, humor, transcendência.
Vocações de santidade à parte, tudo isso é luxo de quem tem a barriga cheia e a segurança de que voltará a enchê-la amanhã. Menos que um ato de linguagem, “Você é um bicho, Fabiano” é um ronco estomacal. Diante dele, emudecem as demais considerações.
Inclusive, no limite, as leis. Em “Os Miseráveis”, o escritor francês Victor Hugo (1802-1885) conta a história de um sujeito que é preso por roubar um pão para sua família faminta. Grotescamente desproporcional ao crime, a punição do Estado a Jean Valjean é denunciada pelo autor como anti-humanista.
Pode-se acusar Victor Hugo de manipular os sentimentos do público (fome é golpe baixo, certo?), mas não de mentir. Faz mais de século e meio que o drama de Valjean comove os leitores do romance e os espectadores de suas adaptações.
Já esta notícia é da última sexta-feira (9): “Justiça de SP nega duas vezes liberdade a mãe de 5 filhos que furtou miojo e refrigerante de mercado”.
Ah, pode dizer alguém, o mundo é dureza mesmo, mas o que o colunista propõe, além de manipular os sentimentos do público?
Bem, o colunista se limita a propor que não fiquemos calados diante da vergonha nacional de ver a fome crescer de modo escancarado, visível nas estatísticas e a olho nu, no país que é o segundo maior exportador de alimentos do mundo.
Tudo isso diante da indiferença criminosa —para nem falar do secreto gozo perverso— de um governo anti-humanista que é pago para cuidar de sua gente e impedir que, todos os dias, novas multidões passem de humanos a bichos.
“Quer que eu faça o quê?”, responde a lei da selva. O Brasil de 2021 é imperdoável.
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